Pequena biografia DE SRI RAMAKRISHNA ( do Sri Sri Ramakrishna Kathamrita) por seu discípulo “M” (Mahendranath Gupta) De todos os mestres espirituais hindus dos últimos séculos, Ramakrishna é talvez o mais conhecido no Ocidente, graças ao trabalho de divulgação de seu discípulo Vivekananda nos Estados Unidos e na Inglaterra, continuado por outros grandes discípulos da primeira e depois da segunda geração. Na França, sua fama se deve às biografias de Ramakrishna e Vivekananda escritas por Romain Rolland em 1929 (biografias admiráveis aliás, e que continuam sendo, provavelmente, os livros mais lidos de um escritor outrora célebre e agora um pouco esquecido). A influência atual do hinduísmo no Ocidente não precisa ser destacada: basta dar uma olhada na seção "Religiões" de uma grande livraria. O movimento criado por Ramakrishna é uma das forças principais que, na própria Índia, fizeram renascer o vigor e o orgulho de uma religião humilhada pelas agressões estrangeiras — e seu hinduísmo é totalmente isento do amontoado de quinquilharias ocultistas tão difundido aqui. Como ele mesmo o previra, o ensinamento desse pequeno sacerdote que falava um bengali provinciano, estabelecido em um templo às portas da grande metrópole da Índia (Calcutá), espalhou-se pelo mundo inteiro. Vivekananda e seus sucessores trouxeram a mensagem de Ramakrishna para o Ocidente como uma forma tolerante, universalista, da Vedanta não-dual. No ensinamento de Ramakrishna, o monismo de Shankara torna-se a verdade suprema, para a qual convergem as outras formas religiosas (inclusive o islamismo, o cristianismo, o budismo e as variantes devocionais da religião hindu). Essa apresentação é com certeza atraente para os hindus ou os ocidentais que se voltam para o hinduísmo. Mas não explica a atração que a personalidade de Ramakrishna exerce sobre pessoas que estão nitidamente fora dos círculos religiosos e não têm intenção de adentrá-los, como o próprio Romain Rolland. Os ocidentais vão buscar na Índia as técnicas de meditação (talvez até mesmo os "poderes ocultos da mente humana") e "o conhecimento do Eu". Encontra-se tudo isso em Ramakrishna, que é um yogui e um vedantista. Mas ainda existe algo que nos toca mais profundamente, e faz dele um exemplo universal: um homem que só buscou Deus, e obteve todo o resto por acréscimo. A tendência ocidental é de falar muito de "religião", mas com temor ou vergonha de falar de Deus. Tudo segue essa tendência: crítica bíblica, psicanálise, discussões sobre moral, Near Death Experiences, parapsicologia, astrologia, especulações sobre o big bang ou os pré-hominídeos. Ramakrishna, por sua vez, não nos deixa escapatória: só fala de Deus. Por isso é necessário retomar suas próprias palavras, afastando os intermediários. Quem não estiver apto a segui-lo nesse terreno, pelo menos encontrará um interlocutor humanamente cheio de encanto e humor, o que não é tão habitual, sobretudo em se tratando de assuntos religiosos. Encontra-se aqui a primeira série dos Diálogos de Ramakrishna, recolhidos e publicados em bengali por seu discípulo Mahendranath Gupta1, "M". Os discípulos diretos atestaram que esse livro extenso (cerca de 900 páginas em bengali e mais de 1000 em inglês) traz as palavras de Ramakrishna com uma exatidão e um frescor que não existem em nenhum outro texto. Contudo, não se pode considerá-lo como uma estenografia, ignorando a personalidade forte de seu autor: modesto, fiel, teimoso, silencioso — às vezes um pouco desajeitado — e em geral notável escritor. Primeiramente, ele tomou notas esquemáticas para seu uso pessoal, depois reconstituiu os Diálogos a partir dessas notas, cinco a dez anos após os fatos no que diz respeito ao primeiro volume, e quarenta anos para o último. A organização do texto de M em cinco volumes não é cronológica: cada um deles contém Diálogos de todas as épocas entre março de 1882 e abril de 1886. Como o ensinamento é sempre o mesmo mas o público muda de um diálogo para outro, o livro se repete muito. Nosso gosto moderno sente-se reconhecido por M ter conservado essas repetições, infinitamente mais vivas do que um conjunto de sentenças. Nisso ele é fiel a Ramakrishna, que não quer nenhuma elegância artificial de oratória e se repete com toda simplicidade. Para ler os Diálogos é preciso paciência, recompensada quando um parábola que se pensava conhecer bem brilha de repente numa cena cheia de vida. Há duas traduções inglesas dos Diálogos. A primeira (1907), feita pelo próprio M, corresponde no conjunto ao primeiro volume da edição bengali (1902), mas comporta alguns belíssimos Diálogos suplementares. Não é uma simples tradução, porque M acrescentou alguns detalhes e colocou um pouco mais de açúcar. A grande tradução de Swami Nikhilananda (1942) abarca o conjunto dos cinco volumes bengalis, agrupando os Diálogos em capítulos, segundo a ordem cronológica (o que facilita as referências, mas acentua as repetições), e omitindo alguns trechos considerados “sem interesse para o leitor ocidental” — principalmente os comentários pessoais de M. Quanto a mim, ao contrário, preferi interessar-me pela personalidade de M, e acho esses trechos bonitos e reveladores. Ocorreu-me por vezes resumir um pouco (as longas sessões de kirtan2 por exemplo), mas sem suprimir nada. No texto bengali, cada diálogo é dividido em seções numeradas, depois em breves subseções com um título que descreve o conteúdo. Em minha tradução, coloquei no início de cada diálogo o seu número de capítulo na edição bengali e o do capítulo da tradução de Swami Nikhilananda; mantive os números de seções, úteis para as referências, mas suprimi as subseções. Os números contidos nas notas de rodapé também dão indicações cômodas. Como esse livro não se destina a especialistas, há muitas notas, para indicar trechos ligeiramente abreviados ou modificados, explicar uma citação, informar sobre esse ou aquele personagem. Quando uma parábola importante é repetida, uma nota remete ao seu aparecimento anterior. O texto traduzido compreende os Diálogos do primeiro volume da edição bengali (exceto o último, relacionado aos discípulos após a morte do Mestre), e quatro Diálogos suplementares que aparecem na tradução de M. Não respeitei inteiramente a ordem cronológica: alguns Diálogos especialmente belos e completos foram colocados no início, formando de certo modo um pequeno livro dentro do grande; lendo-os, ter-se-á uma idéia bastante exata do ensinamento de Ramakrishna, e da atmosfera que o envolve. Certamente uma tradução integral seria desejável, pois os volumes que se seguem também trazem Diálogos notáveis. Como os Diálogos descrevem sobretudo encontros públicos, seria preciso completá-los com o conjunto dos testemunhos sobre as instruções dadas em particular, especialmente aos discípulos monásticos — pelo menos aquilo que pôde ser contado sem desvelar o segredo das almas. Paralelamente aos Diálogos, essas lembranças formam uma literatura mais dispersa, de onde Swami Chetanananda retirou e traduziu para o inglês uma coletânea publicada com o título Ramakrishna As We Saw Him. Ver também seu outro livro, They Lived With God, onde se encontram indicações sobre certos discípulos que permanecem mudos nos Diálogos, ou nem sequer aparecem, como o santo discípulo leigo Durgacharan Nag. Tudo isso abarca apenas os quatro últimos anos (1882-1886) da vida de Ramakrishna. Para os anos anteriores, a fonte principal é a grande biografia escrita por Swami Saradananda (Sri Ramakrishna - The Great Master), que reuniu as palavras do Mestre relacionadas ao seu passado e os testemunhos dos companheiros de juventude de Ramakrishna ainda vivos. É difícil para um não-hindu sentir-se à vontade nesse contexto, pois é também um tratado apologético que justifica cada detalhe da vida de Ramakrishna por citações das Escrituras. Embora esses acontecimentos estejam próximos no tempo e as testemunhas sejam muitas vezes pessoas cultas, até mesmo céticas, e de uma sinceridade evidente, uma parte desses escritos pertence ao gênero hagiográfico, e saber onde isso termina supõe uma decisão arbitrária entre o que é “possível” e o que não é. Poderia ser de outro modo? Seria possível abordar objetivamente uma personalidade como a de Ramakrishna? As coisas já eram assim quando ele estava em vida. Ramakrishna suscitou também a desconfiança e a hostilidade. As pessoas saíam dizendo a seu respeito palavras venenosas, contra as quais os discípulos reagiam fortemente: ele era o “brâmane louco” de Dakshineswar, um “ladrão de crianças”, ou um simples charlatão que fingia o êxtase. O leitor encontrará aqui motivos para reagir segundo seu próprio temperamento. Os Diálogos representam apenas uma parte das lembranças acumuladas por M em suas anotações, feitas sob uma forma impossível de ser usada por outra pessoa que não ele mesmo: breves indicações para a memória, marcando os Diálogos aqui e ali. Durante os últimos anos da vida de M, um monge da ordem Ramakrishna que se apegara a ele e o considerava como seu guru, Swami Nityatmananda, escreveu em bengali um Kathamrita em segundo grau intitulado Sri Ma Darshan, em dezesseis volumes de tamanho médio. Ele mostra a veneração que rodeia M, numa época em que este era um dos últimos discípulos sobreviventes, o uso quase litúrgico do Kathamrita para leitura em voz alta e cantos para acompanhamento, e também coleta lembranças preciosas ou explicações que não haviam entrado no livro dos Diálogos. ______________ Para um leitor ocidental, a leitura dos Diálogos apresenta obstáculos que procurei atenuar, sem com isso lesar o texto. Eliminei expressões devocionais (tais como “homem-deus” etc.) que devem ser reservadas ao público íntimo, deixando a cada qual a liberdade de repor as suas próprias. Tudo já começa pela capa: geralmente o livro é chamado em inglês The Gospel of Shri Ramakrishna, que é o título da tradução inglesa de M, e não o do original bengali4, e parece-me que chamá-lo “evangelho” provoca num ocidental uma reação que, positiva ou negativa, é inoportuna. A seguir, para destacar o fato de que os personagens pertencem à Índia Moderna, e não a um mundo mítico (mesmo que ambos se encontrem), adotei uma atitude flexível na tradução dos nomes próprios, o que exigirá do leitor um pouco de esforço. Antes de mais nada, a pronúncia sânscrita, com todos os seus a, não é mais a das línguas modernas: escreve-se Shiva, Rama, mas pronuncia-se Shiv, Ram (e lamento não ter ousado escrever Ramkrishna). Além do mais, a pronúncia do bengali é bem diferente5: muitos desses a tornam-se o, os v tornam-se b, os s transformam-se em sh... Escrevi à bengali os nomes de pessoas vivas: Noren, Keshob, Bijoy, Biddashagor. Chamaríamos um italiano “Ludovicus” ao invés de Luigi? Mas fazê-lo sistematicamente complicaria demasiado as referências (nos títulos em particular), e por vezes o leitor terá que reconhecer um mesmo nome sob a forma bengali e a forma sânscrita. Os nomes clássicos são deixados na forma sânscrita (sem nenhuma pretensão científica na transcrição), e a maioria dos nomes próprios já familiares aos leitores de Romain Rolland aparecem também sem alteração (Dakshineswar, Brahmosamaj, Tagore). Nos primeiros Diálogos, evitei os termos técnicos da filosofia hindu. Usei palavras ocidentais aproximadas para descrever as atitudes religiosas indianas. Os termos técnicos sânscritos, os únicos totalmente precisos, são depois introduzidos pouco a pouco. A palavra “devoto”, que retorna incessantemente, tem o sentido antigo e forte de ligação com Deus, sem a nuance de hipocrisia proveniente de Tartufo, nem a sentimentalidade insípida do século XIX; ela traduz, pelo menos nos primeiros Diálogos, a palavra bhakta, que designa uma pessoa que busca Deus pelo caminho do amor. Depois deixei essa palavra no texto. O mesmo ocorre com a palavra jñani (pronunciada djñani), difícil de se traduzir, pois designa uma pessoa que busca Deus sob a forma do Uno, pela introspecção e pela discriminação do real e do irreal, e isso não existe entre nós. Nos primeiros Diálogos eu a traduzi por “vedantista”, ou por uma perífrase, depois deixei-a no texto. E o mesmo para as palavras-chave da Vedanta: Brahman é traduzido inicialmente por Uno, Absoluto; Atman por Alma Universal, o Ser, com maiúsculas. Essas palavras não são inteiramente apropriadas, mas o termo original é geralmente colocado entre parênteses. Mais tarde, Brahman e Atman são deixados no texto. A palavra yogui é por demais conhecida para ser traduzida, mas não se deve compreendê-la erradamente: nada a ver com ginástica. Trata-se de raja yoga, ou seja, técnicas visando à concentração da mente, com um acompanhamento físico (controle da respiração) nada espetacular. A palavra “mundo”, um dos termos fundamentais do hinduísmo, traduz muitas vezes palavras sânscritas ou bengalis, entre elas jagata e samsara. Além dos dois sentidos tradicionais da palavra “mundo” no Ocidente, o sentido comum e o do Evangelho (“vós não sois do mundo”, “o mundo não Te conheceu”), ela comporta na Índia uma dimensão cósmica: o ciclo dos nascimentos e das mortes, o universo inteiro levado pela roda do tempo. A palavra sannyasin é traduzida por “renunciante”, às vezes “monge, asceta”, e não procurei indicar as nuances com brahmachari, sadhu — esta última sendo tão conhecida que muitas vezes a deixei no texto. Sadhana é traduzida conforme o caso por “ascese, disciplina espiritual, busca”. A palavra “êxtase” é difícil. Aplica-se por um lado aos “encantamentos” ou “visões” místicas pertencentes às formas devocionais da religião, estados mais ou menos intensos de exaltação com perda mais ou menos completa da consciência externa (bhava, bhava samadhi); é o êxtase que (levando-se em conta a emotividade bengali) faz “cantar e dançar, rir e chorar”, diz Ramakrishna. Mas há também o “grande” êxtase, que corresponde em geral à palavra sânscrita samadhi, que vou deixando cada vez mais no texto no decorrer do livro, e que segundo a Vedanta representa de certo modo um estado “natural” da mente (ou até o único estado natural) sem equivalente explícito nas línguas e culturas ocidentais. Os Diálogos se misturam com cantos religiosos, difíceis de traduzir, e às vezes de compreender. Alguns são modernos, outros clássicos, como os célebres cantos de Ramprasad. Felizmente existem duas belas traduções francesas feitas por Michèle Lupsa*. Ramakrishna os conhecia de cor e cantava-os admiravelmente. Aliás, eles estão na própria origem de sua vocação (“Mãe, Ramprasad Te viu, por que não posso Te ver?”), e pode-se dizer que Ramprasad é o primeiro guru de Ramakrishna. Basta de generalidades. Descobriremos pouco a pouco as múltiplas facetas dessa admirável história. ____________ ALGUNS TEMAS DOS “DIÁLOGOS” Os Diálogos inserem-se na vida cotidiana e na vida intelectual da Bengala da década de 1880. Alguns comentários serão úteis para evitar ao leitor um estranhamento superficial, que dificultará a compreensão do texto. Esboço biográfico. Shri Ramakrishna é o nome religioso6 de Gadadhar Chattopadhyay, um brâmane da aldeia de Kamarpukur, de família pobre e muito religiosa. Nascido em 1836, em 1856 instala-se em Dakshineswar, um subúrbio um pouco afastado ao norte de Calcutá, como oficiante do templo de Kali recentemente fundado por uma mulher notável, Rani Rasmani. Esta e sobretudo seu genro Mathur tomarão Ramakrishna sob sua afetuosa proteção durante dez anos (1856-66), entrecortados por longas estadias em sua aldeia natal, onde ele explora todas as formas da mística hindu, de início sozinho, depois em contato com diversos sadhus. Por longos períodos é considerado louco, desprezado pelos empregados do templo e mostrado aos médicos, que felizmente praticam apenas a medicina indiana tradicional. Mas Mathur percebeu sua grandeza espiritual e previne qualquer ameaça à sua liberdade. Para tentar curá-lo, sua mãe o casa em 1859, segundo o costume, com uma criança que ele vai formar pouco a pouco, e que herdará uma parte de sua influência espiritual, aquela que se dirige à Índia tradicional. Ela se chama Sarada Devi, e os discípulos a chamarão (bem mais tarde) “Santa Mãe”. Em 1861 chega seu primeiro mestre, a “monja brâmane”; depois (por volta de 1864) o segundo, o monge errante Tota Puri, que lhe ensina a Vedanta estrita. Seguem-se alguns anos, durante os quais sua fama espalha-se pelas cercanias de Dakshineswar e para além, em círculos bem tradicionais. Por breves períodos, ele será atraído pelo islamismo (1866) e o cristianismo (1874), e se convencerá de que essas religiões são diferentes caminhos que levam ao mesmo Deus. A multidão de visitantes do templo proporciona-lhe uma larga experiência religiosa e humana. Tendo chegado ao final de sua ascese, a partir de 1873 entra em contato com os grandes personagens da vida intelectual e religiosa de Calcutá. Entre esses um só, porém dos mais célebres, reconhece realmente sua grandeza: Keshav Sen, chefe de uma das ramificações do Brahmosamaj. A partir de seu encontro em 1875, Keshav vai visitá-lo com seus próprios discípulos, e apresenta-o à sociedade culta e parcialmente ocidentalizada de Calcutá, então capital da Índia. Os primeiros discípulos saídos desse meio, homens de idade madura, chegam a ele em 1879-1880. A partir de 1882, são jovens que chegam e entregam-se totalmente a ele. Em 1885, enquanto sua fama se propaga, Ramakrishna é atingido por um câncer na garganta, e morre em agosto de 1886. As últimas testemunhas diretas de sua vida desaparecem na década de 1930, e Romain Rolland pôde ainda corresponder-se com algumas delas, especialmente com Swami Shivananda, então abade da ordem, e com o próprio M. Talvez seja o fato de ter vivido até à loucura todas as formas extremas da religião que dá ao Ramakrishna da maturidade uma espiritualidade radiosa, equilibrada, onde se harmonizam todos os contrários. Apesar de toda a sua grandeza religiosa e seus extraordinários dons intelectuais e artísticos, Ramakrishna permanece um homem sem “educação”, falando uma linguagem por vezes trivial e denotando falta de trato com a sociedade. A esse respeito veremos alguns exemplos: às vezes ele fala por um tempo demasiado longo, às vezes seu humor é engraçado mas ferino e outras vezes, ao contrário, seu amor transbordante coloca algum discípulo sobre brasas. São razões a mais para se apreciar Keshav ou Vijay, Naren ou M. O Brahmosamaj. Não se pode compreender os Diálogos sem ter uma idéia desse movimento, muito bem apresentado no livro de Romain Rolland. Fundado em Calcutá pelo grande Ram Mohan Ray, sucedido por Devendranath Tagore, trata-se inicialmente de uma forma indiana das “Luzes” no sentido do século XVIII: um movimento teísta que, do ponto de vista religioso, rejeita o politeísmo, o culto às imagens, mais tarde a infalibilidade dos Vedas e talvez (menos nitidamente) a crença na reencarnação e no karma. Do ponto de vista social, rejeita o sistema de castas, os casamentos de crianças, aceita o casamento de viúvas, promove a instrução e a emancipação das mulheres. Embora o Brahmosamaj tenha agido diretamente apenas sobre a sociedade instruída de Bengala, sua influência sobre o desenvolvimento da Índia moderna foi fundamental, e o “espírito do Brahmosamaj” alcançou uma ressonância universal por meio da obra de Rabindranath Tagore ou Satyajit Ray. O Brahmosamaj sofreu duas cisões. O tronco antigo, Adi Samaj, que permaneceu sob a direção de Devendranath Tagore, não aparece muito nos Diálogos. O cisma de 1866 afastou os elementos mais ativos, sob o comando de Keshav Sen, um homem extremamente sedutor, o ídolo da juventude de Calcutá. Mas Keshav acredita-se diretamente guiado por Deus, e em 1878 escandaliza sua igreja ao casar sua filha com o filho de um marajá, segundo um ritual “idólatra” e sem respeitar a idade mínima fixada pelos estatutos. Um grupo importante afasta-se então e funda o Sadharan Samaj, com Shivanath Shastri e Vijaykrishna Goswami, que serão encontrados aqui. Keshav proclama em 1880 a Nova Dispensação, mais sincretista do que fiel ao teísmo original, lança sua igreja num turbilhão de atividades e morre esgotado em 1883. Seu movimento, muito dividido, passa então para o segundo plano. Essas querelas não parecem afetar muito os fiéis, que procuram antes de mais nada um equilíbrio entre sua religiosidade tradicional e as idéias científicas ou democráticas importadas da Europa. O Brahmosamaj é um movimento complexo, com aspectos racionalistas e também religiosos. Admiravelmente, uma espécie de simbiose (nascida do afeto profundo que unia Ramakrishna a Keshav Sen e Vijay Goswami) vai ligar por um tempo esses grupos reformadores, excluídos da sociedade ortodoxa, ao hindu mais que tradicional que é Ramakrishna. É a propaganda do Brahmosamaj e sua influência nas escolas que vão trazer a Ramakrishna a juventude de Calcutá, e com esta a maior parte de seus grandes discípulos. Após a morte de Ramakrishna, o trabalho de difusão de Vivekananda trará de volta ao hinduísmo uma parte das elites, e deixará amargura entre os brahmos. O avatar. O autor dos Diálogos é um indiano parcialmente ocidentalizado, um professor, e um homem que gosta de escrever e o faz muito bem. É também um convertido, e que procura converter. Não ficaremos sabendo por ele o que na personalidade do Mestre pode afastar certos ouvintes: por que Sidhu (o parente de M que o acompanha na primeira visita) ou o grande pandit Vidyasagar não foram conquistados como M? Nada saberemos. Nos primeiros Diálogos, os interlocutores só dizem o que é necessário para situar o ensinamento do Mestre. Suas falas talvez não tenham sido anotadas. Só no final é que encontramos verdadeiras conversas com várias vozes, obras-primas de espontaneidade e humor. Há outra coisa, mais difícil de compreender para um ocidental: M propõe-se convencer o leitor (hindu em primeiro lugar) de que Shri Ramakrishna é um avatar, palavra que eu não quis traduzir (“encarnação” cria uma confusão grave com a noção cristã homônima). Seria antes uma “descida” ou “visita” do divino, pois trata-se de um fenômeno repetido: Deus, ou mais exatamente seu aspecto benevolente de Vishnu, encarna-se “cada vez que a religião declina”, diz Krishna no Bhagavad Guita. Ramakrishna, apesar de seu não-sectarismo e seu respeito pelas outras religiões, é um hindu totalmente ortodoxo, que aceita como realidade as narrativas das Escrituras e das grandes epopéias. Em todo esse extenso livro, não se encontrará uma crítica sequer aos costumes tradicionais — que no entanto Ramakrishna infringiu em sua juventude, tirando seu cordão de brâmane, varrendo com seus cabelos a casa de um intocável. Nesse contexto puramente hindu, a noção de avatar perde seu caráter exorbitante. Aliás, o hinduísmo admite, ao lado dos avatares maiores (Krishna, Rama, Buddha ou Jesus para muitos fiéis; Chaitanya para os vaishnavas bengalis), a possibilidade de avatares parciais, “descidas” em uma mesma pessoa de um ou vários deuses menores. A última personalidade geralmente reconhecida como “trazendo” Deus dessa forma é Chaitanya (nascido cerca de 1486), o místico exaltado que renovou o culto de Krishna em Bengala e na vizinha Orissa, em torno do grande santuário de Puri. Foram analogias entre a personalidade de Chaitanya e a de Ramakrishna que levaram um colégio de pandits vishnuístas7 a atribuir a este último a qualificação de avatar. Tal idéia ganhará força mais tarde sob a influência da devoção apaixonada de Girish, escritor, ator e boêmio, e sobretudo durante a última doença de Ramakrishna. O movimento que levou o hinduísmo a “divinizar” Chaitanya e Ramakrishna será talvez melhor compreendido se o compararmos à rápida canonização de São Francisco de Assis, o sannyasin cristão, que possui numerosas características exteriores em comum com eles. Como eles, conheceu o êxtase, amou a beleza da natureza, a música e a poesia, atraiu as pessoas simples e deu vida nova a uma religião que estava a ponto de ressequir-se. A exaltação do guru é o primeiro dever dos discípulos, mas o que o próprio Ramakrishna pensava disso tudo? Li um artigo de cristãos indianos afirmando que Ramakrishna havia sido deificado por seus discípulos sem ter absolutamente contribuído para isso. Essa é também a opinião de Shivanath Shastri, ou do doutor Sarkar, personagens que encontraremos neste livro. Tal ponto de vista pode apoiar-se na simplicidade infantil de Ramakrishna, e na sua absoluta falta de vaidade (já que a palavra humildade não convém a alguém tão expansivo), num país onde se mostra tão facilmente a arrogância, e especialmente a arrogância religiosa. Mas, em sentido contrário, temos uma grande quantidade de frases ditas aos discípulos mais íntimos. A realidade psicológica, a consciência que Ramakrishna tem de ser “teóforo”*, é indiscutível. Pode-se acrescentar que ele não impõe essa crença a ninguém. Os deuses. Insistiu-se muito no fato de que o hinduísmo tardio não é um verdadeiro politeísmo. Os deuses são formas, aspectos do divino, bem distintos e dotados de personalidade, mas ao mesmo tempo o hindu sente-se livre para adorar esse ou aquele deus como Deus Supremo, sem com isso ofender os outros. Os três grandes deuses sempre mencionados, e dos quais cada um corresponde plenamente ao que chamamos “Deus” com maiúscula, são Vishnu, Shiva e a Mãe. Dito isso, nem a intolerância nem a carolice estão fora do contexto, e os membros das diferentes seitas (vaishnavas, shaivas e shaktas) são perfeitamente capazes de brigar para defender a honra de seus respectivos deuses. Por outro lado, não se pode deixar de lado os deuses menores, e até mesmo o pequeno sobrenatural: fantasmas, demônios que vivem nas árvores. Nem omitir o grande papel da astrologia na vida cotidiana, seja sob a forma anódina de almanaques que mencionam os dias fastos e nefastos, seja sob a forma menos anódina dos horóscopos detalhados consultados por ocasião dos casamentos: por que os hindus do século XIX seriam menos obscurantistas que os ocidentais do século XX? Vishnu, também chamado Hari, Narayana, e mais adorado ainda em suas duas formas de Krishna e Rama, é um deus totalmente benevolente, o preservador do universo, um deus que brinca familiarmente entre os homens e visita-os cada vez que a religião está em declínio. Os vishnuístas são dóceis, vegetarianos, por vezes sectários e limitados. Ramakrishna é de família vishnuísta (sua divindade familiar é Rama, e seu nome Gadadhar designa um aspecto de Vishnu). Os grandes santuários de Vishnu são Gaya (onde o pai de Ramakrishna fez peregrinação antes do nascimento deste e teve um sonho anunciando a nova “descida”) e Puri, na vizinha Orissa, onde Vishnu/Krishna é adorado com o nome de Jagannath, o Senhor do Universo, o qual é ilustrado também pela lembrança de Chaitanya, o grande místico, que renovou a devoção vishnuísta e lhe deu a forma dos kirtans, essas longas sessões de cantos, dança e música religiosa (à maneira do dhikr dos sufis, ou dos “spirituals”), que terminam em exaltação. Os Diálogos dão numerosos exemplos de tais práticas, mais significativas ainda pelo fato de M ser um homem tímido e cheio de respeito humano. As formas de Vishnu são associadas a figuras femininas da divindade: Rama a Sita, sua esposa, modelo das mulheres fiéis e castas, que compartilha seu exílio na floresta e depois é raptada pelo demônio Ravana, compondo a imagem da dor resignada e graciosa; Krishna a Radha, a amante apaixonada que se consome de desejo e saudade. Por meio do culto de Radha-Krishna, cuja escritura fundamental é o Bhagavata Purana, essa religião moral e pura toca em elementos eróticos, como as esculturas de certos templos, que agitam os ocidentais. Veremos aqui a atitude de Ramakrishna: uma perfeita pureza pessoal, mas não condenação. Deixando-se isso de lado, Vishnu é o mais próximo do “bom Deus” ao qual estamos mais ou menos habituados. Shiva é uma figura de igual importância, mas menos central na devoção bengali do que na do Sul da Índia, por exemplo. Ele tem outros nomes: Mahadev (“o grande Deus”), Hara, Vishvanath. Seu santuário principal fica em Benares. Shiva situa-se no horizonte da religião de Bengala, assim como o Himalaya limita as planícies: é um deus intenso, abrupto, extático, profundo, a imagem mais próxima que ainda se possa dar do Absoluto sem imagens. Sua projeção humana são os ascetas de cabelos desgrenhados e olhar assustador, nus, a não ser por um pano minúsculo, silenciosos, carregando o tridente, vagando sem jamais parar. É ao mesmo tempo um deus destruidor, violento, um deus libertador. Seu nome queima o que é impuro, penetra vigorosamente toda obscuridade, arranca-nos dela como o cirurgião que nos arranca da doença, se necessário sacrificando alguns membros. Seu culto é despojado: sem imagem, um pilar com uma semi-esfera de pedra negra — os ocidentais baixam os olhos para cochichar que se trata de um símbolo fálico, e certamente esse Deus é uma figura complexa; mas a imagem do lingam é antes a da interioridade: um objeto duro, redondo e fechado, no qual se bate até que, pela graça, a porta se abra. Shiva é associado a outras figuras divinas: sua esposa quase sempre é uma deusa do Himalaya, Uma, Parvati, e entre seus filhos encontra-se o popular deus Ganesha com cabeça de elefante e barriga grande, alvo favorito dos missionários, divindade amável e inteligente à qual se pode recorrer para questões corriqueiras, mas que não será mencionada aqui. Em Bengala, Shiva se tornou freqüentemente um deus passivo, extático, sobre cujo peito dança Kali, a Mãe — assim como as chamas de uma lareira dançam sobre as achas imóveis. A Mãe: este será seu nome principal, além de Kali e Durga, mas geralmente ela absorve em si todas as formas femininas. Desempenha aqui o papel primordial, pois é antes de mais nada o Deus de Ramakrishna, sua Mãe, e as últimas palavras que ele pronunciará, repetindo-as três vezes, serão o nome de Kali. O culto de Kali é outro alvo favorito dos missionários, mas eles não são os únicos8 : às vezes os vishnuístas rejeitam-na com violência. Talvez se trate de uma divindade mais antiga que os Ários em solo indiano, a única do hinduísmo que ainda aceita sacrifícios sangrentos, a única cujos seguidores toleram ou buscam a embriaguez do álcool. É representada na cor negra, dançando sobre o corpo de Shiva, com quatro braços, dois dos quais destroem e dois protegem. Seu rosto é assustador: língua vermelha estirada, dois olhos grandes e fascinantes, e na testa um terceiro olho vertical, o da sabedoria. Ela freqüenta os lugares de cremação, o uivo dos chacais a anuncia, e os thugs lhe ofereciam sacrifícios humanos até recentemente. Não é muito distinta de Durga, forma mais calma porém igualmente poderosa, sentada sobre um leão, armada com uma lança, grande destruidora de demônios. Por isso, a Mãe é ao mesmo tempo todas as divindades femininas: Lakshmi, a beleza e a riqueza; Sarasvati, a ciência; Annapurna, a que dá o alimento. Enquanto o hinduísmo clássico havia dado três nomes divinos à criação, à preservação e à destruição, (o papel de criador estando associado à figura secundária de Brahma, e o hinduísmo não tendo diabo), esses três papéis são desempenhados pela Mãe. Ela é a rainha da região de Bengala, onde a maior festa do ano é o Durga Puja. Ramakrishna conhece de cor os cantos de Ramprasad e Kamalakanta dedicados à Mãe. Que um deus desses —talvez o mais distante de nós entre os deuses da Índia — possa ser o Deus predileto do terno Ramakrishna é um dos maiores paradoxos dessa história. Sentimo-nos projetados para muito longe do universo bíblico, nas trevas que rodeiam os ídolos de Edom e Moab. No entanto, o cerne da espiritualidade de Ramakrishna está aqui. Ele conseguirá converter para Kali o seu próprio mestre de Vedanta, Tota Puri, e sobretudo o super-racionalista Naren (Vivekananda), não sem grandes resistências. De fato, podemos compreender Kali abstratamente como símbolo da Natureza, generosa e devastadora. Mas como explicar uma profunda relação de amor pessoal com a Natureza? A Vedanta. Por trás das imagens dos deuses, existe ainda o Deus Impessoal dos Upanishads: Brahman, o Absoluto, o Uno, a Substância, o Ser — termos filosóficos que não designam objetos de discussão, mas sim um oceano no qual, ao preço de um esforço sobre-humano, alguns homens conseguem mergulhar, embora raramente conservem a vida do corpo e a faculdade de comunicar. A essência última da Vedanta, isto é, a advaita (não-dual), baseada nos grandes Upanishads e ensinada por Shankaracharya, é de fato que esse Uno é a única realidade e que a alma humana saída do Uno pode “realizar” que tudo o que não é o Uno é mera aparência, e pode reintegrar o Uno, ao preço de uma dura ascese de desapego, rejeição do corpo e do eu. O próprio Ramakrishna fez essa experiência e passou seis meses num êxtase de total unidade. É muito excepcional, pois em geral o corpo não sobrevive nesse estado mais do que alguns dias. Freqüentemente essas teorias paradoxais fascinam os ocidentais, pelo seu caráter totalmente “laico”, ou seu sabor levemente blasfematório (“eu sou Deus”). Aqui também estamos longe da Bíblia, mas é algo mais familiar: lembra-nos coisas vistas em Plotino, Eckhart ou Espinoza. É claro que muitos indianos gostam de discutir essas coisas como teólogos, sem praticá-las: ver o divertido personagem que é Hazra, e a atitude de Ramakrishna a respeito. O sentimento de que “tudo é Deus” interpenetra muito profundamente o hinduísmo, e nós o encontraremos presente em cada página dos Diálogos. A rótulo ocidental “panteísmo” não lhe cabe, pois aplica-se em geral a um Deus filosófico muito abstrato, enquanto aqui o Deus que interpenetra tudo continua sendo (permanece?) o da religião. A analogia mais forte talvez seja a da espiritualidade russa, tão plena do sentimento da natureza. A “salvação”. Seja como for, o hinduísmo difere das três religiões originadas da Bíblia pelo fato de que nele a salvação não é concebida como uma continuação da vida pessoal terrena num mundo sem declínio, na presença de Deus. A salvação consiste em alcançar ainda na terra o estado de “liberto-vivo”, o mesmo em que vive Ramakrishna. Uma tal libertação é definitiva, mesmo que o corpo prossiga sua trajetória queimando o karma residual. Portanto, a mística não é de modo algum regulada por uma ortodoxia ciosa; ao contrário, trata-se de um caminho largo e balizado, que coloca como meta da religião para todos os fiéis uma experiência pessoal de Deus — o que em geral se chama “realizar Deus”. Na verdade, a salvação no momento da morte não perde todos os seus direitos: para quem morre em Benares, por exemplo, Shiva murmura ao ouvido o mantra libertador. Os devotos também pedem para ser carregados para morrer à beira do Ganges com os pés na água santa — mas nesse caso não se trata exatamente de uma libertação propriamente dita, e sim de uma orientação dada ao futuro nascimento pelos últimos pensamentos daquele que vai morrer. Alguns devotos de Ramakrishna rogam-lhe que venha tomá-los pela mão no momento de sua morte, para levá-los além das sombras. Os maiores nem sequer desejam mais a libertação. Simplesmente esperam reunir-se ao Mestre em seu “lugar” próprio e voltar à terra com ele em sua próxima descida, a fim de participar de seu Jogo. Outras religiões. O quarto de Ramakrishna no templo de Dakshineswar recebe a visita de muçulmanos, cristãos e sikhs*. Cada um deles pode encontrar ali as imagens de sua própria religião. A imagem de Cristo caminhando sobre as águas e salvando Pedro está pendurada na parede. Posteriormente, a Ordem Ramakrishna será fundada numa noite de Natal, e Vivekananda traduzirá para o bengali a Imitação de Cristo. Todavia, percebe-se nos Diálogos uma certa hostilidade para com o cristianismo oficial dos mestres ingleses, intolerante e agressivo. No livro de M, leitor assíduo dos Evangelhos, sugere-se a idéia de que Ramakrishna é o Cristo, e de que aqueles que o conheceram podem portanto compreender o Evangelho melhor do que os cristãos. Uma tal pretensão pode irritar um ocidental e os trechos em questão desapareceram da tradução de Swami Nikhilananda. Entretanto, é necessário evitar uma reação demasiado sumária. Qualquer comparação direta entre Cristo e Ramakrishna seria arriscada, mas a experiência vivida por M e os outros discípulos de Ramakrishna oferece analogias de ordem psicológica para se compreender o que os discípulos de Jesus vivenciaram. Uns e outros sentiram a admiração, o sentimento do nunca visto, a passagem da familiaridade de todos os dias ao espanto diante de uma grandeza descoberta de repente. E nesse aspecto, a leitura dos Diálogos põe em relevo a do Evangelho, tirando as camadas das tintas hollywoodianas (ou da má literatura) que recobrem a imagem de Cristo. O homem. Se o hinduísmo pode parecer terrivelmente complexo a respeito de Deus, em contrapartida é muito sóbrio em suas concepções do universo e do homem, e sua aparência “científica” nessa questão contribuiu muito para sua recente difusão no Ocidente. O universo é cíclico, sem começo nem fim. Sua evolução entre as criações e as dissoluções sucessivas é regida por forças impessoais, a cadeia impiedosa das causas e efeitos, o karma. Do mesmo modo como as espécies químicas não podem aniquilar-se, mas somente transformar-se e recombinar-se, as ações dos homens não podem extinguir-se antes de produzir seu fruto, e conseqüentemente a alma que engendrou essas ações deve reencarnar até escoar o conteúdo dessa pesada herança — e para isso precisa evitar aumentá-la mais, parando pouco a pouco de produzir ação. Trata-se de um materialismo espiritual, que se pode comparar com as leis físicas de conservação: perenidade dos elementos químicos ou conservação da energia. Com freqüência isso seduz as mentes “positivas” em que nos tornamos. Todavia, quando se olha esse sistema grandioso mais de perto, vê-se que é muito menos “científico” em seus detalhes. Algo deve transmigrar, mas o que exatamente? Será de fato a minha pessoa? Daí as antigas críticas budistas que ainda abalavam Vivekananda. E como se faz essa transmigração? A mitologia propõe o julgamento de Yama, que orienta as almas para infernos ou paraísos temporários, ou dirige-as para uma nova matriz, mas isso não é nem mais nem menos científico do que os julgamentos finais no pórtico das catedrais. Dessa forma o hinduísmo atribui o destino feliz ou infeliz de determinada pessoa ao seu karma, às vezes nos menores detalhes, e sem explicar por meio de qual mecanismo ocorre essa retribuição. Esse determinismo pode acarretar uma certa indiferença: se tudo o que acontece ao meu vizinho é merecido, é melhor para ele que eu o deixe consumir seu karma em paz sem me meter em sua vida. Essa atitude aparece até certo ponto em Ramakrishna, mas é compensada por sua ardente compaixão, sua humanidade sempre a postos, um interesse pelos seres humanos que o faz ensinar por horas a fio, e um amor mais que maternal por seus discípulos. A idéia de karma não é outra coisa senão a de causalidade: o “eu” dos seres vivos é de certa forma um átomo de causalidade, uma unidade de conta. As forças que agem sobre (e por) essas unidades são elas também descritas de maneira puramente objetiva, sem julgamento moral, conforme os “três modos” (gunas) da filosofia Samkhya, que veremos mencionados a todo instante: sattva, rajas e tamas. O primeiro manifesta-se pelo que a religião e a moral ocidentais chamam de bem: doçura, compaixão, sobriedade, altruísmo. O terceiro pelo que chamaríamos de mal: obscuridade, preguiça, entrega ao vício, violência, destruição. Mas não estamos habituados a colocar o segundo modo no mesmo plano: trata-se de um modo brilhante, que se manifesta com uma demonstração de poder, orgulho, atividade. Como se fosse o vermelho, entre o branco e o preto. É ao mesmo tempo construtor (pelo orgulho) e destruidor (pela agressividade). Nenhuma reprovação é feita aos dois últimos modos: eles são necessários à marcha do universo. Contudo, a inteligência pertence ao modo sattva, e é preciso cultivá-lo para deixar de ser um escravo da máquina. Ou melhor ainda: aquele que (por suas tendências inatas) tiver sattva como modo dominante, poderá encontrar o meio de escapar da engrenagem. Há uma Escritura hindu que foge a esse universo mecânico, trazendo de volta Deus Pessoal e a graça: é o Bhagavad Guita. O Deus que aqui se manifesta possui todos os poderes, inclusive o de “suspender” o karma e dar o conhecimento e a libertação. Não é porém um “bom Deus” no nosso sentido, pois permanece responsável pela destruição, dialeticamente inseparável da criação. A Índia não conhece o diabo, e não atribui conteúdo metafísico ao pecado: como em Platão, o mal é cometido por ignorância — ou melhor, o mal e o bem são, com valor desigual, os dois modos da ignorância, tornando-se esta a própria raiz da criação, o processo pelo qual Deus faz pensar que existe outra coisa além dEle mesmo. Diante de uma tal visão do universo, bem sombria em verdade, o hinduísmo propõe três condutas que, em níveis diferentes, permanecem compatíveis. A primeira é a busca da libertação pelo conhecimento. Esse procedimento é semelhante ao do budismo: trata-se de saber finalmente quem está aprisionado, de perceber que não sou eu, e que as forças cegas prosseguem com o seu jogo sem que isso me diga respeito. A segunda consiste em tomar as rédeas da prisão, mesmo que provisoriamente: os hindus sempre acreditaram que a ascese permite acumular poder, um poder até mais forte que o dos deuses. A terceira é a atitude que chamaríamos realmente religiosa: aceitar o mundo como o Jogo divino, reconhecer que sob suas leis cegas esconde-se a graça e tornar-se como uma folha levada pelo vento. Veremos a coexistência dessas três atitudes. Em relação à sexualidade, por exemplo. Nenhuma condenação moral é feita à sexualidade em si mesma, e o pudor extremo do judaísmo e do cristianismo não pertence à cultura indiana. No entanto, a castidade é expressamente recomendada como meio de acumular força, o que corresponde à segunda atitude. Seja como for, a atitude hindu pode ser descrita quer como um realismo espiritual admirável, quer como um materialismo espiritual por vezes chocante. Os visitantes de um homem santo freqüentemente vêm para uma espécie de troca econômica: trazer uma oferenda, voltar com um benefício espiritual; livrar-se do karma ruim e conseguir um bom. Seria isso tão estranho assim para a nossa cultura? Pensemos nas disciplinas, jejuns, cilícios; penitências e indulgências; méritos que se adquirem por sacrifícios, trocados pelo tempo passado no purgatório; e também essa idéia de que uma certa quantidade de mal, de pecado, pode ser redimida por essa ou aquela privação. A forma pode parecer-nos exótica, mas o fundo não o é. Parece-nos que todas as religiões muito antigas, seja qual for sua teologia, acabam por reconstituir toda a gama das atitudes possíveis. Trocas. Quando os pregadores hindus do fim do século XIX souberam da teoria ondulatória da luz, ficaram maravilhados: “A ciência moderna confirma nossa tradição.” E os teosofistas, por sua vez, inundaram-nos de ondas e todos os tipos de vibrações sutis. Uma troca leve, mas material, produz-se pelo olhar (certos brâmanes comem atrás de uma tela, para não serem vistos por não-brâmanes); os lugares santos estão saturados de boas influências, devido à devoção das multidões de visitantes, etc. A primeira forma de troca praticada por aquele que vem ver um santo consiste simplesmente em olhá-lo, em “obter o seu darshan”, que é uma espécie de impregnação pelo olhar. O mesmo ocorre com a imagem de uma divindade. O que traduzimos como “conhecer Deus” é em realidade “ter o darshan” de Deus, e não há descontinuidade entre esse darshan e o de um homem santo, ou o do Ganges ou o de um lugar santo. O segundo tipo de troca, mais íntimo, é o contato. A forma usual de saudação a um santo supõe que nos prosternemos diante dele, “tomando a poeira de seus pés”. Isso evoca o contato de dois condutores, que se encontrem por um instante elevados ao mesmo potencial. Através desse contato, o santo pode às vezes assumir certa quantidade do karma de seu visitante; e os discípulos de Ramakrishna, discutindo o câncer que levara seu Mestre, atribuem-no a todo o mal que ele havia tomado para si. Quando o contato toma a forma de um serviço íntimo (não só tocar rapidamente os pés do mestre, mas massagear-lhe as pernas, por exemplo), ele fica infinitamente valorizado. Terceira forma: a oferenda de alimento. Se o santo aceita o alimento que lhe dou, assume uma pequena dívida para comigo, que pode ser paga de várias maneiras. O alimento pode também ser oferecido a um deus, ficando, por meio do rito, descarregado de seu potencial ruim e carregado com potencial bom, sendo distribuído em seguida ao conjunto dos fiéis sob a forma de prasad, alimento purificado e enriquecido pela graça do deus ou do mestre espiritual. Mais uma vez aqui, o contato valoriza a oferenda de alimento: se o discípulo recebe o prasad na boca, da própria mão do mestre, como um filho o receberia de sua mãe — ou, mais incrível ainda, se o mestre se deixa alimentar pelo discípulo — o efeito espiritual é bem mais intenso. Da mesma forma, se o mestre aceita donativos em dinheiro isso o liga àquele que oferece, obrigando-o a assumir um pouco de sua carga. Quarta forma: a iniciação. Trata-se quase sempre da transmissão feita por um mestre espiritual, ao ouvido de seu discípulo, de uma fórmula carregada de poder, um mantra — em geral uma espécie de oração jaculatória, consistindo em um ou mais nomes de Deus, e que deverá ser repetida ou contemplada pelo discípulo. Esse rito instaura também uma responsabilidade, uma verdadeira filiação espiritual entre mestre e discípulo. O mau karma pode ser deslocado, mas não destruído, e muitas vezes caberá ao mestre pagar a dívida do discípulo. Quer por meio dos méritos adquiridos por ascese, quer sofrendo em seu lugar — e ficamos admirados por encontrar aqui, nesse universo mental tão distante, um dos temas da santidade cristã. Poder-se-á constatar neste livro a que ponto essas trocas impregnam o relacionamento entre Ramakrishna e seus discípulos — e o quão livremente Ramakrishna se comporta com eles. Impossível classificar seu comportamento num esquema. Mas fica claro que ele dá uma grande importância a cada um deles. Jamais aceita a menor soma de dinheiro de quem quer que seja, e muito raramente dá a iniciação formal. Toma muito cuidado com a comida, sobretudo em relação a quem a dá; quando aceita, primeiro oferece-a mentalmente a Deus, a fim de transformá-la em prasad, e então distribui uma parte para as pessoas presentes. Em relação ao contato simples em que o discípulo toca os pés do mestre, há momentos em que o evita e momentos em que se acha no meio de uma multidão e aceita-o da parte de desconhecidos. Uma coisa é certa: a felicidade que ele proporciona a seus discípulos aceitando pequenos favores, pedindo-lhes para comprar-lhe um pequeno objeto, aceitando guloseimas. Puro e impuro. O contato e a divisão de alimentos com o mestre trazem um conteúdo positivo tão forte quanto o conteúdo violentamente negativo que têm na vida corriqueira. Aqui o materialismo espiritual funciona em sentido inverso: uma sujidade que nos parece material (o contato da pele com algo sujo) penetra sutilmente até a alma. O que é sujo? Todas as coisas usadas, rejeitadas, impregnadas das “vibrações” de sabe-se lá quem: excrementos, restos de alimento, louça não lavada, cabelos. E depois tudo o que se acha em contato com isso: os pés e os sapatos que tocam a terra suja, os homens que lidam com restos: lixeiros, varredores, barbeiros. A analogia com a preocupação pela pureza entre os fariseus é notória, mas a Índia tem contra a sujeira um remédio que Israel não possuía: a água do Ganges. O Mestre mantém uma jarra dessa água em seu quarto, e quando alguém realmente sujo passou por ali — não um homem sem casta, mas um homem rico com seu cheiro de dinheiro, ou carregando um jornal* — faz-se uma aspersão no lugar onde ele se sentou. As mulheres. Há poucas mulheres nos Diálogos. É que a província de Bengala esteve por muito tempo sob a influência muçulmana, e homens e mulheres ali ficam estritamente separados, pelo menos nas castas altas. As mulheres da boa sociedade quase não saem dos apartamentos interiores e circulam em carros fechados. O público dos Diálogos parece ser composto exclusivamente por homens. Contudo, muitas vezes grupos de mulheres vêm receber o darshan de Ramakrishna. Depois de um momento de conversa, Ramakrishna manda-as visitar sua própria esposa, que vive (em condições de extremo desconforto) num pequeno pavilhão do templo. Existe ali, ao redor da “Santa Mãe” (muito jovem ainda e extremamente tímida) um grupo de mulheres de personalidade vigorosa, algumas das quais têm uma coragem e uma ousadia que muitos homens poderiam invejar. Por outro lado, as mulheres têm em relação aos homens a superioridade de fazer a comida, o que dá ao santo homem indiano um meio de lhes comunicar sua graça de modo muito pessoal, que consiste em comer essa comida e apreciá-la. Quando Ramakrishna vai visitar a família de um discípulo em Calcutá, a reunião geralmente ocorre a portas abertas, e as mulheres ficam à distância nos apartamentos interiores, mas o Mestre vai visitá-las e ali come alguma coisa. Podemos lembrar aqui a reflexão engraçada da pobre viúva Gopaler Ma (aquela que via o menino Krishna), por ocasião de seus primeiros encontros com o Mestre: “Que coisa esse sadhu que só pensa em comer!” Durante os quatro anos descritos pelos Diálogos, fica claro que Ramakrishna tem uma grande reserva em relação às mulheres, sem contudo jamais mostrar uma atitude artificial ou perturbada. Sempre adverte seus discípulos (Nityagopal e às vezes Naren) em relação às devotas demasiado maternais: “um sannyasin deve dar o exemplo da renúncia; um sannyasin não olha uma mulher, nem mesmo em pintura”. Essa é a regra geral. Mas como sempre, em se tratando de Ramakrishna, ela sofre exceções: por sua devoção, Binodini, uma atriz do teatro de Girish, será levada a disfarçar-se de gentleman inglês, enganando a vigilância dos discípulos e entrando no quarto de Ramakrishna enfermo em Shyampukur, para pousar a testa nos pés do Mestre, maravilhado com sua astúcia. Ótima oportunidade para risadas10! Uma civilização. A época de Ramakrishna é o apogeu da civilização anglo-indiana. Calcutá é então a capital da Índia inglesa. A cruel revolta dos Cipayas11 ainda está próxima (1857) e o poder inglês transformou-se em Império em 1877. Ninguém duvida de sua perenidade, nenhuma oposição ousa levantar a cabeça, e a esperança de vê-lo comportar-se segundo os princípios generosos que ele anuncia ainda não se esvaneceu. Reinam a ordem e a paz, a capital embeleza-se, a burguesia bengali se enriquece e participa da administração inglesa, em níveis subalternos mas não humilhantes, e espera maiores regalias. A juventude instrui-se avidamente, primeiro na terra natal e depois na Inglaterra. Os antigos rajás ou proprietários de terras perdem a influência política, mas conservam suas riquezas, investidas em parte em residências suntuosas — sobretudo aquelas “garden-houses” onde se desenrola uma parte dos Diálogos — e na manutenção de uma vida artesanal e artística intensa. Como pano de fundo, há um desastre na zona rural: a exploração do solo pelas culturas industriais, as devastações do paludismo. Aproximam-se os tempos em que as esperanças insatisfeitas vão causar a agitação política, as primeiras revoltas, a divisão da província em 1905, e a transferência da capital para Delhi. Agora o mundo inteiro é atingido pelos fenômenos que afligiam a Bengala de 1880: colonização cultural, dependência política ou econômica, erosão das línguas, dos costumes e das religiões. No seio daquela civilização em rápida evolução, Ramakrishna permanece “impoluto”, como ele mesmo o diz do Absoluto sem atributos. Por detrás de seu frescor infantil, de sua inteligência e de sua vivacidade, as multidões que acorrem a Dakshineswar podem vislumbrar a realidade de alguma outra coisa. Conhecer Ramakrishna alarga o campo do possível. C.M. ___________ AGRADECIMENTOS. A Kumari, depositário dos comentários de Swami Ritajananda sobre o Kathamrita, pelas inúmeras observações sobre a exatidão e o estilo desta tradução; a Mira e Rakhal, pelo incentivo e por toda uma documentação referente ao Brahmosamaj, Shivanath Shastri e sobretudo “M”, a qual me permitiu avaliar o quanto este último se tornara uma figura religiosa imponente; a Swami Amarananda, por sua gentileza e paciência em esclarecer numerosos pontos obscuros do livro, que só um religioso e um bengali podia compreender perfeitamente; finalmente, a Swami Chetanananda, pela autorização para reproduzir o testemunho de Kshirod Chandra Sen. UM TESTEMUNHO No livro de Swami Chetanananda Shri Ramakrishna As We Saw Him figura o testemunho de Kshirod Chandra Sen, que foi ver Ramakrishna uma única vez com a idade de dezoito anos1, em 1879 (numa época em que Ramakrishna ainda era pouco conhecido), com um grupo de jovens do Brahmosamaj de Keshav. Esse testemunho, publicado em 1932 (em inglês) na Prabudha Bharata, a revista da Ordem Ramakrishna, é extremamente precioso. Antes de mais nada, a lembrança de uma visita única tem mais frescor do que uma síntese entre encontros múltiplos. E depois, esse rapaz da cidade, educado à inglesa, vê com olhos bem abertos o mundo bizarro dos sadhus. Ele descreve a longa espera do final da tarde em Dakshineswar, onde Ramakrishna (por motivo de êxtase) não pode receber o grupo de adolescentes, e a conversa da noite, pouco animadora. Sua reação, inicialmente negativa, à linguagem por vezes trivial do camponês que era Ramakrishna, ou a comentários um tanto ferinos sobre Keshav e seus discípulos, dá-nos uma outra visão de Ramakrishna, sem o filtro da devoção (e da arte) de M. Após um mau jantar e uma noite perturbada pelos percevejos e pernilongos, os rapazes, decepcionados, gostariam de atravessar o Ganges e voltar a Calcutá pela outra margem. Mas seu chefe (designado por “C.K.”) faz questão de pedir uma instrução espiritual a Ramakrishna, que havia sido elogiado por Keshav. Essa conversa da manhã deixará em Kshirod uma lembrança inesquecível, que ele descreve a seguir. Para nós também ele parece comunicar algo da presença de Ramakrishna. ...Shri Ramakrishna sorriu e disse: “Que ensinamento vocês querem, meus filhos? Sentem-se e digam-me o que vocês querem me perguntar”. Nós nos sentamos, e Shri Ramakrishna sentou-se conosco. C.K. fez perguntas e Shri Ramakrishna respondeu. Mas antes de dar essas perguntas e respostas, eu gostaria de descrever à minha moda como ele falava, pois a forma era mais impressionante ainda do que o conteúdo (...). Suas frases eram breves, em geral com três ou quatro palavras cada uma. Raramente eram completas do ponto de vista gramatical, mas eram carregadas de sentido. Seu pensamento era claramente coerente, mas suas frases pareciam descontínuas às vezes. Era preciso tempo para ligar logicamente cada uma delas com a seguinte. Mas Shri Ramakrishna falava lentamente, e parava de maneira perceptível ao fim de cada frase, o que nos permitia fazer a ligação. Ele dispunha as flores de seu pensamento com facilidade e com arte, mas sem usar linha e agulha para formar guirlandas com elas. Falava com a autoridade de um profeta. Nele, a inspiração e a expressão eram uma coisa só (...). Eis algumas das perguntas de C.K. com suas respostas: P — Por que as imagens de Krishna são negras2? R — As pessoas sofrem da ilusão da distância. O céu nos rodeia. O próprio céu está no espaço3. Eles são idênticos. O céu é azul. O espaço é luminoso. Olhem melhor para Krishna. Vejam-no de perto, de frente. Vocês verão que Ele é luminoso. P — A submissão a um guru é indispensável à salvação? R — Vocês querem ir a Hugli. Podem ir a pé. Podem alugar um barco. Podem comprar uma passagem no barco a vapor. A única diferença é a velocidade. Se vocês forem sinceros, chegarão a Hugli. Vocês podem parar o barco em Serampur e fazer meia volta. Podem parar lá. Podem cair na água e afogar-se. Sejam sinceros. Não tenham medo. P — O que é melhor, ser monge ou chefe de família? R — Não lhes cabe escolher. Vocês não são livres. Algumas pessoas se tornam monges. A maioria constitui família. As duas coisas são difíceis. As pessoas acham natural ter família. A diversidade foi estabelecida por Deus. Shukadeva era um verdadeiro monge. Andava completamente nu. E no entanto as mulheres que estavam se banhando no rio não tinham medo quando ele chegava. Mas elas se escondiam quando chegava o velho pai dele. O rei Janaka manejava duas espadas, uma em cada mão. Levava as duas vidas ao mesmo tempo. Na essência elas não são incompatíveis. O importante é não se deixar poluir por um apego exagerado pelo mundo. O peixe4 mora no lodo. No entanto ele permanece brilhante. Um ser humano é mais que um peixe. Ele vive rodeado de lama, sujeiras, venenos. Como viver sem se sujar? O leite misturado com água perde o gosto. Perde seu valor nutritivo. Mas a água não penetra na manteiga. A manteiga precisa ser batida de manhãzinha. No calor do meio-dia não se pode mais. As árvores que cresceram não receiam mais as vacas. As vacas comem as árvores jovens. Por isso as pessoas colocam uma cerca em volta delas. Façam sua escolha, meus filhos. Pouco a pouco tomamos gosto pelas coisas ácidas. A visão do tamarindo5 agrada a quem gosta de acidez. Mas também podemos decidir abster-nos de tamarindo. Para isso é preciso vontade. O coco verde é cheio de água. Chacoalhem (ele punha as mãos em concha e sacudia-as perto de sua orelha esquerda, como se houvesse um coco dentro). Vocês não ouvem nada. A água, a casca e as fibras são uma coisa só. Chacoalhem um coco maduro. Vocês vão ouvir a água mexendo-se. Quando o coco está totalmente maduro não há mais água. A castanha se separou da casca. Chacoalhem. Vocês vão ouvir o miolo. E ele disse: “Eu vivo em minha concha, mas ela não me aperta. Eu me libertei de meus apegos”. Shri Ramakrishna prosseguiu assim durante muito tempo. Não me lembro de tudo o que ele nos disse: já faz mais de meio século, eu era jovem e nunca havia recebido instruções sobre o valor do desapego, completo ou parcial. Talvez eu não tenha compreendido tudo. Mas o que compreendi tocou uma corda essencial em meu jovem coração, e nunca esqueci aquela música (...). Eu tinha dezoito anos, agora tenho setenta e um, e o desapego foi uma das notas dominantes de minha vida. Procurei viver como o peixe no lodo. Não estou certo de ter conseguido, mas o desapego é mais natural para mim do que o apego. Se existe algo de bom em minha vida, devo isso ao discurso de Shri Ramakrishna sobre o apego e o desapego. SUMÁRIO 1. Mestre e discípulo (fevereiro-março 82) 2. Passeio de barco com Keshav (27 de outubro de 82) 3. O pandit Vidyasagar (5 de agosto de 82) 4. Em Dakshineswar com os discípulos (16 de outubro de 82) 5. Visita ao Brahmosamaj em Sinthi (28 de outubro de 82) 6. Conversa com Vijay (14 de dezembro de 82) 7. Com Amrita e Traylokhya (29 de março de 83) 8. Com diversos visitantes (22 de julho de 83) 9. Em Dakshineswar (19 de agosto de 83) 10. Festa em Sinduriyapati (26 de novembro de 83) 11. Última conversa com Keshav (28 de novembro de 83) 12. Na casa de Jaygopal Sen (28 de novembro de 83) 13. Kirtan na casa de Surendra (15 de junho de 84) 14. Visita ao pandit Shashadhar (25 de junho de 84) 15. Segunda visita em Sinthi (19 de outubro de 84) 16. Em Dakshineswar com Mahimacharan (26 de outubro de 84) 17. Na casa de Balaram e depois na de Girish (11 de março de 85) 18. Em Shyampukur (22 de outubro de 85) 19. Em Shyampukur (25 de outubro de 85) 20. Em Shyampukur (26 de outubro de 85) 21. Em Shyampukur (27 de outubro de 85) 22. Em Cossipore (14 de março de 86) ____________ 1 Nascido em 1854, morto em 1932, diretor da Morton Institution, uma importante escola de Calcutá. Passou os últimos anos de sua vida escrevendo o Kathamrita e transmitindo o ensinamento de Ramakrishna. 2 Música devocional, geralmente acompanhada por dança. 4 Este, Shri Shri Ramakrishna Kathamrita, significa aproximadamente “o néctar das palavras de Shri Ramakrishna”. 5 Aliás, os pandits bengalis, e o próprio Ramakrishna, pronunciam o sânscrito como bengali. * Instituto Francês de Indologia, Pondichéry, 1967; Les Belles Lettres, Paris, 1982. 6 Na verdade, M pensa que esse nome lhe foi dado em seu nascimento. 7 Reunidos pelo guru de SR, a “monja brâmane”; ele próprio parece ter ficado indiferente. * Teóforo: que leva Deus — do grego theo (Deus) + phorós (que leva, que conduz). 8 Ver a repulsa de Tagore em R. Rolland, Inde, p.284 (Albin Michel). O próprio Ramakrishna ficava horrorizado pelos sacrifícios de animais (mas às vezes matava percevejos...). * Há cerca de 18 milhões de sikhs na Índia, concentrados sobretudo no Punjab. Constituem um grupo religioso marcial, cuja doutrina foi estabelecida pelo Guru Nanak (1469-1538), o qual buscou reunir o melhor do hinduísmo e do islamismo. * Ver o Diálogo 17, -----. 10 Swami Chetanananda, They lived with God, p. 300. 11 Revolta dos soldados indianos do exército britânico, aos quais se quer impor o uso do novo fuzil Enfield, cujos cartuchos são lubrificados com gordura de vaca ou de porco: hindus e mulçumanos ficam chocadíssimos (cf. Inde, Larousse, Paris, 1992, p. 31). 1 Aparentemente, um rapaz de dezoito a vinte anos na Índia de 1880 é visto e se vê como um adolescente de quatorze ou quinze anos de nossa época atual. 2 Veremos que essa pergunta a respeito de Krishna e Kali é feita com muita freqüência, especialmente pelos membros do Brahmosamaj. Talvez se trate de um dos argumentos da propaganda anti-hindu. 3 Kshirod escreveu “the sky” e “the firmament”, com certeza uma tradução aproximada dos dois termos sânscritos para o ar e o “éter” (akasha). 4 Literalmente, o peixe-do-lodo, mudfish. 5 Um condimento ácido. Nos ensinamentos de Ramakrishna o tamarindo freqüentemente representa a luxúria.